Helton K. Lustoza

Helton Kramer Lustoza

Você sabe com quem está falando?

31/10/2020 14H34

Jornal Ilustrado - Você sabe com quem está falando?

Helton Kramer Lustoza

Este ano será lembrado por várias situações em que colocamos em teste o sistema democrático brasileiro. Além da pandemia e normas de isolamento social, tivemos vários episódios em que nos fez refletir sobre como aplicamos o princípio da isonomia.

No início de julho, os meios de comunicação mostraram um vídeo no qual uma mulher humilhava um agente fiscal que apenas exigia o cumprimento das normas contra a Covid-19 em um estabelecimento comercial do Rio de Janeiro. Ao ser chamado de cidadão pelo fiscal, que cumpria seu dever, a esposa do indivíduo autuado, respondeu com a seguinte frase: “Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor que você.”

Em outra ocasião, um Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que caminhava no litoral santista sem utilizar máscara, foi alertado pelo guarda municipal da irregularidade. Além de se recusar a cumprir a norma municipal, o magistrado telefonou para o secretário de segurança municipal para demonstrar sua influência. Não satisfeito, rasgou e jogou no chão a multa aplicada. Em ambos os casos, entrou em cena a famosa pergunta: “sabe com quem você está falando?”

É difícil estabelecer com precisão as origens do “você sabe com quem está falando?” no país, mas a atitude de invocar a posição social para justificar o descumprimento da lei nos faz relembrar o período definido pelos historiadores como coronelismo.

O historiador José Murilo de Carvalho define o coronelismo como fruto de uma relação de forças entre os proprietários rurais e o governo e, que representou “um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronéis”. Desmitifica-se a imagem simplificada do coronel como grande latifundiário isolado em sua fazenda, o que demonstra que em tempos modernos, coexistem vários tipos de coronéis, desde latifundiários e comerciantes, até médicos e agentes públicos.

Desta forma, a história do Brasil demonstra que em várias ocasiões pessoas se utilizaram de cargos públicos, “castas” sociais ou poder econômico para buscar o reconhecimento de privilégios sociais. Assim, fica evidente que o termo “você sabe com quem está falando?”, está relacionada ao hábito de classificar os cidadãos conforme seu status social e econômico, como se as regras não tivessem validade igual para todos.

Na visão do antropólogo Roberto DaMatta, a “carteirada” é sintoma de uma cultura que tem aversão ao igualitarismo, lembra que desde a instalação da família real portuguesa no Brasil “com sua corte, em 1808, aqui se consolidou um sistema feito de duques, marqueses e barões: de inferiores e superiores estruturais. Então o sistema do saber com quem se fala equivale a saber quem é o ‘cara’, o dono, o rico, o líder. Quem se acha ‘alguém’ coloca o outro no lugar de ‘ninguém'”. E passado muito tempo, ainda percebemos resquícios do coronelismo que acaba por confundir o público e o privado, através do qual, até mesmo os cargos públicos, criados para servirem à sociedade acabam, em alguns casos, servindo de escudo para prática de atos totalmente reprováveis.

Apesar de todo avanço que as instituições públicas tiveram com base na profissionalização do serviço público, primado nos princípios da moralidade e impessoalidade, ainda persiste a tentativa de certas pessoas se “acharem” superiores no ambiente social, ignorando as leis e regras de convivência.

É preciso que esta pequena parte dos servidores públicos passem por uma mudança cultural, de modo que possam compreender os limites e a verdadeira natureza do cargo que ocupa, bem como, desatar este “cordão umbilical” com a estrutura feudal e patrimonialista.

Se por um lado, ainda lamentamos ter que presenciar condutas desrespeitosas e antissociais, como as que foram apontadas neste artigo, por outro, temos motivos para acreditar que a sociedade está cada vez mais intolerante a esses comportamentos. Se antigamente as pessoas que eram confrontadas com a pergunta “sabe com quem está falando?” tinha como reação o silêncio ou a passividade, atualmente, a população já encara como uma conduta reprovável de forma a repudiá-la publicamente.

Helton Kramer Lustoza

Procurador do Estado do Paraná

Professor do Curso de Direito da UNIPAR

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