Um lixo draconiano

     Mil vezes, graças a Deus e à Constituição por sermos um estado laico. Cada um é livre para ter sua religião ou crença. Também pode ser agnóstico ou nem ter fé. Ninguém pode impor dogmas religiosos ao Estado que precisa cuidar de todos, creiam ou não. Tenho a minha fé desde o berço. Se sou contrário à liberação geral do aborto, quero-o permitido nas três hipóteses legais. Nas teocracias religiosas, o que se viu e vê é um desastre civilizatório de opressão e atraso em o nome de um Deus rancoroso, cruel e vingativo.   

     O projeto de lei do pastor Sóstenes Cavalcante, presidente da bancada evangélica da câmara federal e aprovado em regime de urgência, é um lixo opressor que merece o nome de projeto do estuprador. Quer tornar homicida com pena de seis a vinte anos de reclusão, a mulher estuprada que não faz o aborto em até 22 semanas da gravidez. A pena é o dobro do estuprador (art. 213 do Código Penal). O atraso religioso quer obrigar a parir o filho do estuprador e isso não passa de crueldade! A lei que autoriza o aborto nas hipóteses de perigo de vida da mãe, estupro e anancefalia, caso de feto sem cérebro (art. 128 CP) não fixa prazo algum. Não sabe ele que a maior parte das vítimas de estupro é pobre, criança e preta. Muitas vezes descobrem tarde a gravidez indesejada. N´outras vivem o drama da solidão dentro de casa, sem ter a quem recorrer e sem acesso a contraceptivos e assistência médica.

     Esse projeto de lei 1904/24 é draconiano e ataca a dignidade da mulher que precisa ter o direito de decidir sobre seu corpo e a sua gravidez, sem prazo nem óbice como diz a lei. É questão de saúde pública e o Estado precisa tomar o seu lugar, assistindo a mãe em dor e desespero. Se o atraso está fazendo ninho em meio a um congresso reacionário, ultrapassado e conservador, é preciso ir às ruas para defender a dignidade das mulheres que se quer solapar. 

Onde estão Grêmios estudantis, Diretórios Acadêmicos, Universidades e quetais que não se mobilizam? Atentem que o atraso é tinhoso. Usa de artimanhas. Usa o nome de Deus e até fala de vida, mas despreza a dignidade de quem a gera. É o caso desse projeto do estuprador, um lixo draconiano.

     (Eliseu Auth é promotor de justiça inativo, atualmente advogado).