Umuarama

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

E tudo começou com um ‘quer casa comigo?’

03/12/2018 17H16

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E tudo começou com um ‘quer casa comigo?’

Umuarama – Tudo começou com um ‘quer casar comigo?’ O que prometia ser um conto de fadas, aos poucos foi se transformando em um pesadelo.

Os primeiros cinco anos foram relativamente tranquilos. Apenas “troque essa roupa. Está muito curta”. “Não vamos hoje na casa da sua mãe, quero ficar só com você”. “Você agora é casada. Não é legal ficar saindo com suas amigas para fazer happy hour”. Pareciam frases que expressavam ciúme, preocupação, vontade de ficar junto. E eu atendia e me isolava.

Logo vieram os filhos. Nem todos os quilos extras foram embora depois da segunda gestação. E o que antes eram elogios, passaram para comentários ‘ácidos’ como ‘você está gorda. Porque não faz um regime!’. “Nada fica bonito em você porque está enorme”.

VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA

Aos poucos a autoestima foi sendo fragmentada, quebrada. A maquiagem passou a ficar guardada. O cabelo, uma das muitas vaidades que sempre tive, passou a ficar preso em um rabo de cavalo por ser mais prático por causa das crianças, trabalho, casa. Vestidos foram trocados por calças, bermudas e camisetas para ‘disfarçar’ a barriga. E essa desconstrução, anulação da personalidade foi apenas aumentando.

Temos a mesma idade e você parece mais velha”, passou a ser uma frase usada com frequência, sempre com a insinuação de que ele continua lindo e que eu tenho que agradecer por ele ainda estar comigo sendo feia, gorda e sem graça. Sem contar a culpa que vem junto por me sentir assim. Eu acreditava que ele tinha razão.

A VIOLÊNCIA FÍSICA

Esse ano, em um início de noite em que apenas nós estávamos. As crianças estavam na minha irmã. Ele avançou mais um passo para me desconstruir. Primeiro foi o grito e o xingamento por eu ter discordado de ir passar um feriado na casa dos pais dele.

Na sequência foi o empurrão. Cai na cama. Ele subiu encima de mim e descontrolado me deu dois tapas no rosto e começou a me esganar. Desesperada comecei a arranhar, empurrar. Não conseguia gritar para ele parar. Por sorte, quando não aguentava mais respirar, ele me soltou. Desceu da cama. Disse que a culpa disso era minha por o ter provocado e saiu de casa batendo a porta.

Nunca me senti mais só e desamparada. Naquele momento percebi que eu estava sendo agredida há anos, mas precisei apanhar para me dar conta. Cheguei ao fundo do poço.

O relato triste é de uma professora umuaramense de 32 anos e casada há 10 anos com um profissional liberal. Ambos jovens, bonitos, esclarecidos e que retratam uma realidade vivida por tantas mulheres que estão próximas de nós. A história de Valentina* poderia ser da sua irmã, da sua vizinha ou a sua própria.

A ESPERANÇA

Valentina continua casada com o marido. Há seis meses está com acompanhamento psicológico e psiquiátrico, tomando calmantes todos os dias e aos poucos está reconstruindo sua autoestima.

Segundo ela, a agressão física foi pontual e acredita que não vai mais acontecer. O marido se recusa a também fazer o tratamento. “Sei que parece estranho. Não vou dizer que estamos bem, porque não estamos. Mas penso na minha família. Aos poucos estou voltando a ser eu mesma. Estou com ‘personal’, já perdi peso e já gosto do que vejo quando me olho no espelho. Ainda não é o ideal. E principalmente tive a coragem de dizer que não vou mais ser agredida e que não aceito mais nem os comentários maldosos. Por enquanto ele está se comportando. Vamos ver”.

CRAM

Dados do Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM) apontam que atualmente 110 pessoas estão em atendimento na unidade local. Lá elas encontram orientação psicológica, jurídica e assistencial para que possam se reconstruírem e decidirem o que fazer com suas vidas.

A decisão final é sempre da mulher. Não a incentivamos a acabar uma relação. A ajudamos a se empoderar para poder escolher por si só o que deseja fazer. Quem não tem uma profissão, a ajudamos a se preparar para o mercado de trabalho também”, afirmou a psicóloga Jôze Kelly Fator.

BUSCA ATIVA

O trabalho, que inclui a busca ativa de vítimas de violências, é feito por Jôze e pela assistente social Andressa Elisa Martos Antunes. Os boletins de ocorrência formalizados na Delegacia da Mulher são o ponto de partida do trabalho. E a demanda também é para quem não formalizou a agressão na polícia. “Para ser atendida não tem que passar pela delegacia e fazer uma denúncia. Basta vir aqui e terá ajuda”, esclareceu Jôze.

EX-AGRESSORES

Entre a clientela, estão mulheres de 18 a 59 anos, sendo a maior parte com idade entre 25 e 40 anos. Outro ponto que chama a atenção é que pelo menos 70% dos atendimentos realizados no CRAM são de mulheres com filhos e agredidas por ex-companheiros ou ex-namorados.

Muitas chegam aqui e percebem que viveram uma relação abusiva somente após o término. Elas nem se dão conta e normalmente acreditam que a culpa por tudo é delas”, explicou a psicóloga.

CASOS DE POLÍCIA

No último dia 21 de novembro duas mulheres foram agredidas em Umuarama.

O primeiro caso foi de uma jovem com filhas pequenas que também acabaram apanhando com o cabo da enxada. Os golpes foram desferidos pelo companheiro. O homem chegou a ficar preso, mas ganhou liberdade na quinta-feira (29).

O segundo caso foi de um feminicídio tentado, onde um homem de 62 anos tentou matar a ex-namorada de 52 com golpes de faca. A agressão foi na avenida Brasil, no centro de Umuarama, quando a vítima voltava para casa, depois de sair da escola. O crime foi flagrado por câmeras de segurança de empresas. Segundo a Polícia Civil, a mulher não morreu porque o autor foi interrompido por terceiros.

O autor do crime foi preso preventivamente no dia 29 por determinação da Justiça. Para a polícia, disse que tentou matar a ex-namorada porque ela o provocava e insinuava que ele não seria homem.

DELEGACIA DA MULHER

Somente na Delegacia da Mulher de Umuarama foram abertos 640 inquéritos em 2017. Novembro de 2018 fechou com cerca de 600 investigações e a probabilidade é que ultrapasse a quantidade do ano anterior. A maior parte das denúncias é pelos crimes de ameaça e lesão corporal dentro do ambiente familiar.

Mas a quantidade de agressões é maior uma vez que nem todos os boletins de ocorrência se transformam em inquéritos e nem todas as vítimas procuram ajuda.

Somente a Polícia Militar atendeu 247 chamados de violência doméstica este ano, mas segundo o comandante do 25º BPM, tenente-coronel Aguinaldo Letrinta, o número pode ser maior. “Se a violência for mais grave, como um feminicídio ou uma lesão corporal grave o registro é feito de outra forma. Assim esses números não são absolutos”, explicou. Ainda segundo a PM, em quase todos os casos, o socorro é dado dentro da residência da vítima.

*O nome Valentina é fictício. Foi usado para preservar a identidade da entrevistada.