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Helton Kramer Lustoza

LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE: PODER DE POLÍCIA OU AUTORITARISMO?

28/09/2019 14H20

Na égide de um Estado Democrático de Direito é possível entender que o poder público possui prerrogativas que garantem a conservação da harmonia entre os cidadãos, dentre elas encontramos o Poder de Polícia. Esse poder se caracteriza, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello: “(…) ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos.”
O exercício dessa prerrogativa pauta-se na discricionariedade administrativa, sendo que a Administração, em regra, dispõe de uma razoável liberdade de atuação, podendo determinar, dentro dos critérios de oportunidade e conveniência, quais atividades fiscalizará num determinado momento e, dentro dos limites estabelecidos na lei.
Recentemente, foi publicada a polêmica Lei 13.869/2019, a qual disciplina os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público no exercício de suas funções. Assim, as condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
Conforme disciplina esta lei, só ficará caracterizado o abuso de autoridade quando o ato tiver, comprovadamente, a intenção de beneficiar a si próprio ou prejudicar outro, de modo que a mera divergência interpretativa de fatos e normas legais (hermenêutica) não configura, por si só, conduta criminosa.
Estão englobados como agente ativo qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a servidores públicos e militares, do Poder Legislativo, Poder Executivo, Poder Judiciário, Ministério Público e dos tribunais ou conselhos de contas.
Mas o que chama a atenção é a necessidade de uma legislação regular o excesso de poder na atuação dos órgãos fiscalizadores, sendo que muito se tem reclamado pelos abusos cometidos pelos agentes administrativos.
Observa-se que em corriqueiras fiscalizações das mais variadas searas, através de seus mais modernos aparatos, o Estado tem cometido alguns excessos. Tanto foi a repercussão que levou o Supremo Tribunal Federal a editar a súmula vinculante número 11, que veio restringir o uso de algemas a casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo. Isso já significa a preocupação das autoridades face aos excessos praticados pelos agentes fiscalizadores.
Mas por outro lado, temos que admitir a necessidade de um melhor aparelhamento (logístico e legal) dos órgãos fiscalizadores para combater com mais eficiência a impunidade, sendo que nenhum bom cidadão defenderá a impunidade e corrupção. Contudo, deve-se ter em mente que a Administração Pública, no exercício de suas funções, deve ter limites! Não se pode legitimar uma ação fiscalizatória, por mais significativa que ela seja, se ela não atendeu aos ditames constitucionais, como a presunção de inocência do fiscalizado, a privacidade da empresa e do empresário e o direito de um tempo hábil de apresentação de documentos durante a inspeção.
O professor José dos Santos Carvalho Filho defende que “há uma linha, insuscetível de ser ignorada, que reflete a junção entre o poder restritivo da Administração e a intangibilidade dos direitos (liberdade e propriedade, entre outros) assegurados aos indivíduos. (…)Agir além dela representa arbítrio e abuso de Poder, porque a pretexto do exercício do poder de polícia, não se pode aniquilar os mencionados direitos”.
Deste modo, não se pode permitir que a palavra PODER DE POLÍCIA seja tomada com uma ideia abstrata que nada justifica, simplesmente caindo como fundamento para atos arbitrários, isto é: “daí-me o que eu quero, a fim de que eu possa provar que sou mais forte do que vós”. A Administração Pública deve ter parâmetros na sua atuação fiscalizatória, sendo vedado de tratar todo cidadão como se fosse culpado sem um devido processo legal, sob pena de haver uma confusão indissociável entre criminosos e não criminosos.
Em outras palavras, é preciso não confundir a supremacia do interesse público com as suas manipulações e desvirtuamentos em prol do autoritarismo retrógrado e reacionário de certas autoridades administrativas.
Portanto, o problema não é da lei, mas sim de sua aplicação prática. Devemos lutar para que as ações fiscalizatórias sejam pautadas nos parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, guardando uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja alcançar, mediante uma ideia social do que é usual e sensato, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (Resp 728.999/PR).

Helton Kramer Lustoza
Procurador do Estado
Professor do Curso de Direito da UNIPAR
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